sexta-feira, 16 de abril de 2010

Extinto (a um amigo influente)

Hálito de cobra
Dentro do vidro
A neve cai
E cobre o teu corpo
Afável gigante

Jóia de prata verde
Detrito
Casualidade partida
Na testa mutilada do mundo
À beira de um novo ataque

Para não incomodar a coreografia
A esta hora já regressam os corvos
Ao teu jardim
Sei que paraste de respirar nas folhas
De manusear as lamas
E que te deitaste ao lado
Da vida que corre no espelho do lago
Olhos fechados com a terra das margens

Vejo-te correr para bem longe daqui
Até ao mais denso do verde
Vejo-te ajoelhar silenciosamente
Para te observares
Ainda vivendo
Falando com os teus
E com os outros
Mostrando-lhes as tuas mãos vazias
Ensinando-lhes a tua vertigem cor de plantas
Sentido proibido, imagem
Parábola, carambola
Treze no buraco

Denunciado pelas paredes do vidro
Sais finalmente em liberdade
Diriges-te ao bosque
Para confrontares o teu corpo morto
Exigir explicações
Desafiá-lo para um duelo
Ao pôr-do-sol

Quando morreste
Mataste algo de mim
Coisa pouca que seja
Mas que faça de mim
Um homem melhor
Um sítio melhor
Para a tua memória viver


Descansa em paz Peter.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Flor na cicatriz do granito

Como se de um breve fogo se tratasse
Como se das chamas saísses tu ilesa
De amores falhados
Como se da chuva eu bebesse
E saciasse a sede de ti

Como se de uma rocha onde se gravou
A violência do mundo
Saltasse uma pedra como mensagem
Que se arremessa à cabeça de um gigante

Como se todo o tempo fosse essa ou outra tarde
Como se numa concha coubesse mesmo um mundo
Como se nos valessem os anos sofridos
em alfabetos de silêncio

Como se o caos se detesse por um momento
Para te ver a sair do fogo
Para te beber na chuva
E colher-te

A ti
Flor na cicatriz do granito

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Falência verbal

Indecifrável calor
Esse os das palavras
Que se marcam na carne
Para resgatar uma simples memória

Esta terra é
Como um centro de um mundo
Mercado de migalhas douradas,
Em que da janela de um hotel
É possível comprar o céu

Interrompo o que é importante
Para atender aos estranhos
Que chegam para reclamar
O meu tempo que era o teu

Irrepetível sabor
Esse os das cicatrizes salgadas
Como rosas na carne
Para resgatar a história
Que foi nossa

Possuo a totalidade do nada
Conheço a totalidade do segredo
Guardado no coração do monstro amável

Interrompo a árvore
Quando colho a flor
E encho de bestialidade
Um simples gesto de amor