quarta-feira, 25 de março de 2009

Amália Hoje

Quis o destino que fosse escolhido para dar voz a canções da Amália juntamente com amigos. Tudo isto é fado e fado é uma espécie de amizade, que relaxa a rigidez e o caractér sacrossanto do tema e ajuda a vencer dificuldades e a exaltar as poucas certezas que comem o medo e lhe deitam a língua de fora. Os meus amigos nesta aventura são o Nuno Gonçalves que tudo fez desde dirigir orquestras a seleccionar os temas que lhe pareceram mais consentâneos ao espírito e letra da 3 época da artista; a Sónia Tavares, que emprestou uma alma profunda aos seus lábios que proferiram os sentimentos das canções; e o talentaço Paulo Praça, o nosso ponta de lança e organizador, uma espécie de Wolf do Pulp Fiction que esteve sempre lá quando era preciso música e que nos faz sentir grandes porque está do nosso lado e pequenos quando ao lado de talento destes. O Nuno e a Sónia são dos The Gift e o Paulo está agora a solo mas tem os Plaza e em tempos idos os Turbojunkie.

Se tudo correr bem vão ouvir falar muito deste projecto de amigos e amantes de música verdadeira e de agitar as àguas paradas em prol da qualidade e da modernidade. Se estão curiosos visitem este link: http://dn.sapo.pt/inicio/artes/interior.aspx?content_id=1175736&seccao=M%FAsica, já levanta o véu um bocadinho.

A mim, que sofro de melancolia, calhou-me interpretar um fado cujo poema foi feito pelo punho e dor da própria Amália e que me colheu de surpresa tal a sua força, intensidade e cofre aberto. Pelo que para aqui o transplanto:

Grito

Silêncio
Do silêncio faço um grito
E o corpo todo me dói
Deixai-me chorar um pouco
De sombra a sombra
Há um céu tão recolhido
De sombra a sombra
Já lhe perdi o sentido
Ó céu
Aqui me falta a luz
Aqui me falta uma estrela
Chora-se mais
Quando se vive atrás d'ela
E eu
A quem o céu esqueceu
Sou a que o mundo perdeu
Só choro agora
Que quem morre já não chora

Solidão
Que nem mesmo essa é inteira
Há sempre uma companheira
Uma profunda amargura
Ai solidão
Quem fora escorpião
Ai solidão
E se mordera a cabeça
Adeus
Já fui p'ra além da vida
Do que já fui tenho sede
Sou sombra triste
Encostada a uma parede
Adeus
Vida que tanto duras
Vem morte que tanto tardas
Ai como dói
A solidão quase loucura


Este é o poema do fado interpretado no funeral da Amália. Os seus versos estão compilados num livro Versos pela Cotovia. O disco sai dia 27 de Abril.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Algumas viagens sem ti

Outro da gaveta com a tua permissão :

Dortmund

Regresso.
O hálito de schnaaps corre na rua da estação, um rio arrastando as réstias das tribos em súplica de ar, com as cabeças levantadas ao céu.

O fumo de um cigarro de um total de quarenta, cordilheira de nuvens de um negro mais profundo que o dos céus, gravada como carvões por usar, tinta negra sobre papel negro.
Nós, entre todos sozinhos na desilusão de voltarmos e encontrarmos tudo na mesma apesar de todos se terem dado bem.

O mesmo sucesso de cabelos de meses no chão, a mesma roupa da cama, as nódoas nos mesmos sítios, as cidadelas de bichos no lavatório da cozinha, por dentro das paredes, correndo rente às portas, no branco falso do tecto. Sucesso que não me deixa em paz, de pessoas a utilizar, o cheiro de café pegado aos dentes, o trilho sem parar do comboio cortando a neve, indo a parte alguma, as casinhas amontoadas com pessoas lá dentro agachadas perante quem chega no sopro do Verão Alemão.

A chuva dá-nos nas costas dizendo-nos adeus, até à próxima maré que traga os nossos despejos até à cidade que vive no nosso nunca mais.

Vingança.

Sugestão para dia 19, próxima Sexta:

Debate e semana temática de celebração do bicentenário de Edgar Allan Poe. http://www.fl.ul.pt/poe_gothic_creativity/ Dia 19 de Março: 18h15-20h00: Arte Fantástica em Portugal (com António de Macedo, Fernando Ribeiro, Filipe Abranches, Filipe Melo, Maria Antónia Lima, Paula Ribeiro) I Fantastic Art in Portugal (with António de Macedo, Fernando Ribeiro, Filipe Abranches, Filipe Melo, Maria Antónia Lima, Paula Ribeiro) – Casa Fernando Pessoa apareçam, divulguem.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Parque Central

Eu também já me tinha esquecido e por isso vocês não podiam,por isso saber. Uma vez, de regresso de uma tour com a banda pelos EUA, fui acometido de um jet-lag intenso que durou quase duas semanas e me fazia acordar pelas 6.30, 7.00 da manhã. Tu ias trabalhar e eu ia escrever para o parque. Nesse parque a essa hora pouco mais havia que os velhotes a passearem lentos e as pessoas velozes a ignorarem-nos na marcha impediosa da vida. Observei mais do que escrevi mas tenho uma nostalgia hoje dessas alturas mas não desse tempo. E não era por ter de acordar cedo. Não conseguia dormir. Passados anos e dores, ganhei esse direito. O meu pudor era diferente na altura. Ainda sinto alguma vergonha de ir para um parque, com um bloco e apontar escritas. É entrar sem respirar naquela poesia que me arrepia: a do estar sempre a escrever mesmo sem saber porquê. Esse pudor esmagava-o aos poucos num blog que tive mas que não mostrei a ninguém. Sobra dele um print screen guardado algures numa memória mais ou menos portátil e alguns textos que evoco agora na abertura deste cofre:

Park views ( a observação dos cisnes)

1-
Quem o vir tão sossegado, a ler e a escrever, tomando a sua cerveja fria, enojado do fumo desde que deixou de engolir ele próprio e das nódoas da mesa que são as mesmas de há anos, não imagina que ele é um demónio malvado, conspirando para derrubar a ordem do mundo e terminar de forma rápida e violenta com a vida de todos que o observam.
As cadeiras arrastam um pouco no chão quando os corpos tombam licenciosamente fulminados pelo seu olhar levantado.
O empregado tardio aparece com um grande balde e com uma esfregona para limpar o sangue empapado no chão e seco nas paredes.
Ele levanta-se, paga sorrindo ao empregado, deixa uma enorme gorjeta e sai não se esquecendo de pedir licença a cada corpo morto que se atravessa no seu caminho.

2-
O cabelo é vermelho e fala ao telemóvel com o rasgado sorriso do poder sexual. Passa por mim e assusta-me. Uma criança atrás agarra-lhe a mão livre. Ouço-a a combinar o holocausto para mais logo, depois da noite da barriga cheia, num quarto qualquer dos subúrbios a explodir do calor da maldade.

3-
(gazela)
Tem um risco enigmático à maneira egípcia em cada olho e não repara em mim pela segunda vez hoje. Não sei o que a faz fugir para tão longe e tão velozmente. Talvez seja o medo que trago aguado nos meus olhos pesados.

4-
"Aí não!"- "Vamos um pouco mais aqui para o lado, para a sombra da carne que nos resguardará dos olhares envelhecidos do passado."
"Deixa caírem as tuas pernas sobre as minhas e deixa os nossos calores tocarem-se."
"Seremos memórias manchadas quando a noite cair. Eu nas tuas mãos. Tu nos meus lençóis. Nós no último suspiro do velhote que nos observava oculto no trono do seu jardim."