quinta-feira, 5 de março de 2009

Parque Central

Eu também já me tinha esquecido e por isso vocês não podiam,por isso saber. Uma vez, de regresso de uma tour com a banda pelos EUA, fui acometido de um jet-lag intenso que durou quase duas semanas e me fazia acordar pelas 6.30, 7.00 da manhã. Tu ias trabalhar e eu ia escrever para o parque. Nesse parque a essa hora pouco mais havia que os velhotes a passearem lentos e as pessoas velozes a ignorarem-nos na marcha impediosa da vida. Observei mais do que escrevi mas tenho uma nostalgia hoje dessas alturas mas não desse tempo. E não era por ter de acordar cedo. Não conseguia dormir. Passados anos e dores, ganhei esse direito. O meu pudor era diferente na altura. Ainda sinto alguma vergonha de ir para um parque, com um bloco e apontar escritas. É entrar sem respirar naquela poesia que me arrepia: a do estar sempre a escrever mesmo sem saber porquê. Esse pudor esmagava-o aos poucos num blog que tive mas que não mostrei a ninguém. Sobra dele um print screen guardado algures numa memória mais ou menos portátil e alguns textos que evoco agora na abertura deste cofre:

Park views ( a observação dos cisnes)

1-
Quem o vir tão sossegado, a ler e a escrever, tomando a sua cerveja fria, enojado do fumo desde que deixou de engolir ele próprio e das nódoas da mesa que são as mesmas de há anos, não imagina que ele é um demónio malvado, conspirando para derrubar a ordem do mundo e terminar de forma rápida e violenta com a vida de todos que o observam.
As cadeiras arrastam um pouco no chão quando os corpos tombam licenciosamente fulminados pelo seu olhar levantado.
O empregado tardio aparece com um grande balde e com uma esfregona para limpar o sangue empapado no chão e seco nas paredes.
Ele levanta-se, paga sorrindo ao empregado, deixa uma enorme gorjeta e sai não se esquecendo de pedir licença a cada corpo morto que se atravessa no seu caminho.

2-
O cabelo é vermelho e fala ao telemóvel com o rasgado sorriso do poder sexual. Passa por mim e assusta-me. Uma criança atrás agarra-lhe a mão livre. Ouço-a a combinar o holocausto para mais logo, depois da noite da barriga cheia, num quarto qualquer dos subúrbios a explodir do calor da maldade.

3-
(gazela)
Tem um risco enigmático à maneira egípcia em cada olho e não repara em mim pela segunda vez hoje. Não sei o que a faz fugir para tão longe e tão velozmente. Talvez seja o medo que trago aguado nos meus olhos pesados.

4-
"Aí não!"- "Vamos um pouco mais aqui para o lado, para a sombra da carne que nos resguardará dos olhares envelhecidos do passado."
"Deixa caírem as tuas pernas sobre as minhas e deixa os nossos calores tocarem-se."
"Seremos memórias manchadas quando a noite cair. Eu nas tuas mãos. Tu nos meus lençóis. Nós no último suspiro do velhote que nos observava oculto no trono do seu jardim."

Um comentário:

Christine disse...

...I apologise for writing in english, even more now that my portuguese has become a part of me more than my mother-tongue ever will... I never quite realised how profound your art really is, both the poetry and the music itself, but only recently have i come to drown in the immenseness of it all and all too soon has my blood been infested by it's beauty...
Reading this post, brought shiver's down my spine due to relating to it so well... I can only thank you so much more for continueing to bring to us your hidden geniusness and remaining humble at heart and true to your roots at the same time.
I believe the credit Moonspell truly deserves is still to come.
Thank-you - another member of the Eternal Spectator clan, Cristina *