quarta-feira, 30 de março de 2011

TRVE

Completei há dias o meu segundo conto para o livro a editar pela Gailivro em Maio. Chama-se TRVE (lê-se true) e é uma história sobre Natalie Mayer, a escritora de vampiros mais vendida no mundo, e a homenagem que lhe fazem no Salon du Libre em Paris. Fica um excerto, espero que gostem:


"Margarita olhou e respirou fundo. Tudo isto tinha sido ideia de Cecília, Ceci, a implacável manager de Natalie, que várias vezes reduzia o seu gosto apenas aquilo que funcionava, não olhando a tradições ou a reivindicações de pureza. Uma acção de Natal, com Natalie, no Great Mall of América, em Minneapolis, nos Estados Unidos, tinha ficado famosa. Cecilia tinha enchido o centro comercial com os seus Pais Natal/Vampiros, que distribuíam gomas vermelhas pelas crianças e envelopes vermelhos com saudações de Natal vampíricas e marcadores do livro novo de Natalie. Mandou montar dentro do centro uma montanha russa, obrigando a administração a desmontar a montanha russa residente, para a substituir por uma, desenhada pelos criadores do cenário dos filmes adaptados dos livros de Natalie. Entrava-se por uma boca gigante, com os caninos afiados e subia-se vertiginosamente para depois cair a pique, passando os carros (todos vermelhos em forma de cálices curtos) por uma poça de sangue falso. Hologramas das personagens dos filmes interagiam com o comboio, seguindo as pessoas, sentando-se ao lado delas, quase palpáveis, culminando tudo numa recta velocíssima, e cheia de suspense, entrando num flash vermelho nos olhos de Stuart, o vampiro protagonista da história.

Do outro lado milhares de pessoas sujas e molhadas de sangue falso, compravam toalhas do merchandise oficial de Natalie. Tinha sido um sucesso! Passaram pelo centro nesse dia mais de cem mil pessoas e praticamente todas estavam agora em casa, a saborear o entretenimento de Natal, a aquecerem-se às lareiras, lendo as aventuras de Stuart, Celta, Robinson, Vix, Noctis, no liceu, na universidade, no campus, nas florestas irreais dos subúrbios, disputando, golpe a golpe, fala a fala, os destinos de todos os vampiros desta geração."

"Por isso, Maeva e a sua posse, mantiveram os cumprimentos curtos e eficazes. Afinal percebiam como ninguém que o corpo é apenas a concha mortal da interioridade que nos manipula e nos faz materializar através da técnica artística o mundo interno que se vive, a missão que ele cumpre e a inscrição sensorial dessa mensagem, estado, pensamento, emoção. Maeva sabia perfeitamente que aqueles quatro seres e os seus acólitos que inauguravam e fechavam a procissão edipiana da banda até às margens do povo and back, eram quatro invólucros de fibras, ossos, carnes e nervos, aos quais agradecia a espreitadela ao seu interior, o turbilhão de electrónica, de palavras acesas como lâmpadas que queimam os olhos, pelo ritmo e pela coragem e principalmente pela confirmação da sua mortal profundidade.

Maeva elaborava nesta teoria da mortal profundidade com os seus amigos na bistro da família de, nunca se percebia de onde, nesta teoria de que eles e quem se juntava a eles eram apenas a tal concha, o tal invólucro mortal, como a banda, uma espécie de organismo, de corpo que transportaria o sangue, a mensagem, a informação e executaria o plano conforme ela e Nobby, que reclamavam para si o estatuto metafísico de alma, uma coisa entre corpo, coração, cérebro. O núcleo duro ali sentado seriam as pernas, as tetas, a massa cinzenta, os braços, os dedos. Teriam de se desresponsabilizar do mundo, das terras, dos amores e concentrarem-se na vingança sobre quem tinha vestido à sua raça milenar pólos da Lacoste, sapatos da Diesel, calças da Levis. Até agora o plano tinha corrido às mil maravilhas. O concurso, o desenho da estrutura, a sua montagem, as identificações falsas. Maeva trabalhava, sobre o jocoso aliás de Madeleine Crouton, já há mais de dois meses no pavilhão 1 do Salão do Livro."

resto de boa semana!

segunda-feira, 21 de março de 2011

No dia mundial da poesia


"Um poema nunca se acaba, abandona-se"

Paul Valéry


No Dia Mundial da Poesia, relembro a todos o poema de Padrón, já aqui publicado numa outra ocasião. As boas coisas tem uma autorização superior para serem repetidas. Os contos evoluem da melhor maneira, conto acabá-los muito em breve e enviá-los para revisão. A capa do livro que conterá os dois contos será executada por João Maia Pinto. Boa semana a todos.

(http://www.facebook.com/people/João-Maio-Pinto/1462479804)

Mais que um filho

Mais que um filho, é um escravo, o poema.
É parte dos teus sonhos indomáveis,
Um farrapo da tua alma sucessiva,
Um monte de palavras que salva a tua memória
Dos momentos plenos do deserto.

Por vezes é o eco incompreendido
Da tua própria consciência ou de outro sangue
Que em ti palpita sem que tu o saibas.

(…)

O poema é um corpo abstracto, talvez um ser
Misterioso de que és o seu deus único.
Podes embelezá-lo ou deformá-lo
Com a perversidade de um tortuoso castigo
Até torná-lo céptico, canalha ou taciturno,
Perante a lucidez dura de teus olhos.

(…)

há poemas obscuros e assassinos
que nos espiam com a sua adaga levantada
há outros juvenis, tersos, apaixonados,
cuja directa luz desnuda o fogo.
Também os há ociosos, brigões, lascivos,
Curiosos ou ignorantes que perguntam
Sem que jamais possamos responder-lhes.

Um poema é, enfim, um látego desditoso
Uma alma solitária trespassada de repente
Pela densa dor que o convoca

JJ Padrón

quinta-feira, 10 de março de 2011

Cabaret Seixal e excerto do conto Exercício de Cidadania

Queria agradecer a todos quantos foram ao Seixal. Foi uma noite muito bem passada, feita de cumplicidades e ambiente. Um abraço em especial ao Charles, pelo convite e pela hospitalidade! E outro David Soares que nos falou do bem e do mal com a mestria habitual.

Este conto, juntamente com outro de nome TRVE, será parte da colecção de mitos urbanos, com a chancela Gailivro (grupo Leya), a editar em livro em meados de Maio.

O conto Exercício de Cidadania narra a história de ZP, um serial killer, que caça politicos. Não é intervenção, é ficção. Enjoy!

"ZP não chamava a atenção. Corria o pais na sua carrinha. Ficava em pensões e hotéis de três estrelas no máximo pagos pela Hidromundo (gota a gota matamos a sede do planeta). Comia na pensão e guardava sempre o cartão de visita que vinha agrafado às facturas. Cada vez que repetia uma cidade, repetia a hospedaria. Planeava o seu mapa-morte de acordo com as suas deslocações, intervalando sempre a caça com um esquema simples:

- Nunca matava na primeira visita embora observasse a vítima no seu habitat. Os trabalhos de fiscalização e de administração duravam três a quatro dias sempre. Cobria a cidade mas também os arredores.

- À segunda ou terceira visita efectivava o crime, despejando os corpos em ambientes sempre coincidentes com os desaparecimentos. Por exemplo, quem se afogasse, ficava nas margens, escondido de uma maneira que levasse cerca de dois ou três dias a encontrar. Neste âmbito inclua casas, planícies, sítios em obras, que tinham a vantagem de encerrar em si desde logo a própria história, sem grandes perguntas.

- Não deixava pistas ou então criava artificialmente vestígios que esbarrassem nas burocracias e nas perícias técnicas da Policia, que conhecia e tinha estudado e que sabia que estavam limitadas aos cortes de orçamentos tantas vezes assinados por vítimas ou candidatos a vítimas.

- Acompanhava os casos até uma certa altura, desfazendo-se depois de todos os registos que o pudessem ligar ao acontecimento. Usilva fazia exactamente o mesmo.

ZP era uma pessoa dupla. Essa qualidade permitia-lhe uma flutuação de sentimentos. O sexo e a morte era ideias rápidas e violentas. Não lhe ocupavam o tempo suficiente a ideia. Assim, mantinha-se longe da pulsão até bem perto do principio e do fim do acto. Tinha um gatilho que desligava e lhe permitia a banalidade de pensamento e de acção. Comia o bife da casa no restaurante de pensão em Alfandega e este merecia-lhe tanta consideração como o bandido que fazia as cooperativas da sua terra fecharem e os trabalhadores suicidaram-se ou se entregarem ao ócio e aos vícios, falecendo em vida. Nunca tinha comentado os seus métodos como ninguém e até Usilva sabia, apesar das insistências deste, apenas informações gerais, algumas até por via indirecta. Era como jogar as cartas. Usilva sabia que cartas tinham calhado a ZP mas durante o jogo, havia um puxão da toalha que cobria a mesa, os copos entornavam o vinho que bebiam, as garrafas de cerveja explodiam espumosas nas cartas, tudo se misturava, o jogo tinha ido até ao limite, nunca chegando ao fim. Depois de limpa a mesa, baralhavam, partiam e tornavam a dar.

Não era de poucas palavras. Nem de muitas. Não vivia na escuridão, nem na luz. Participava na área cinzenta como quem sai para dar uma volta ao parque e volta para casa sem ser visto por ninguém. Não era cruel mas sabia sê-lo perante as medidas. Não se sentia um justiceiro, nem um matador e sabia que nunca iria ser um herói. Tinha, contudo, uma ideia de justiça que lhe parecia colorir a sua vida banal e como aquele homem que vive e vai todos os dias ao café, à campa da sua mulher colocar flores, ao quiosque comprar o jornal, o bom dia à empregada da portagem, que vai dar uma volta com o cão, que compra todos os dias o pão, duas carcaças, dois integrais, até se tornar invisível nas suas acções, parte da rua como a árvore da esquina, o marco antigo do correio, as bilhas de gás atadas por correntes à porta da mercearia. O chão que se pisa sem olhar. Como o chinês, transformado no que o rodeia. Camuflagem simples, despretensiosa, aproveitando a indiferença dos rostos.

Tinham sido até agora, vinte três. No norte do pais, terreno fértil de corrupção, tinha despachado dez. Acidentes de carro, acidente de caça, queda em poço. No Sul, apenas dois até agora. Caramba, tinha crescido por lá. Enforcamentos. No centro do país, com uma área mais extensa, do litoral ao interior, os restantes. Queda de andaime em pleno dia, ataque cardíaco depois de almoço farto, afogamentos em barragens, morte súbita."